sábado, 22 de outubro de 2011

Quimera


Outro dia li num livro do pedagogo Rudolph Lanz: "(...) constatamos empiricamente uma certa polaridade entre vida e consciência: um predomínio da vitalidade implica em consciência reduzida, ou, em outros termos, o desenvolvimento da consciência se faz às custas das energias vitais". Trocando em miúdos, se quer fazer uma coisa direito nesse mundo, dedique-se; se quer desenvolver sua consciência, ore e vigie, pois terá um gasto de energia fatal, cujo montante vai depender dos passos que o processo da tua individuação vai precisar dar. 
Te escrevo hoje não porque tiveste febre (esta já sabemos compreender e até já gostamos quando ela vem: sinal auspicioso de cura e de queima benéfica do que não te serve mais), mas porque, às vezes, é árdua e doce, ambas em amálgama, o abraço desta missão.
Tem sido espantosa tua resposta aos nossos movimentos. Se a comunicação telepática vai diminuindo com o desenvolvimento da linguagem e a chegada dos três anos, ironicamente devo dizer que hoje me sinto absolutamente desnuda, perante tua sagacidade e tua sensibilidade, filha - ou somente agora atingi olhos pra isso? Às vezes, sinto-me aquém do que poderia fazer com isso tudo. Ao viver na concretude todas as manifestações espantosas do acesso que você faz ao meu inconsciente/consciente, ao mesmo tempo agradeço pelas "pistas" que me ofereces e, não raro, não sei o que fazer com elas. É como se tivessem me dado algo muito maior do que eu tivesse a capacidade de resolver, no concreto, contigo. É como se meu peito tivesse uma superfície pequena para o mar colorido que o invade.
Assisto, cá do meu lugar, de forma quase tranquila, uma alegria, uma sensibilidade, o reconhecimento de descaminhos em mim que se manifestam em ti e com isso a compreensão de outras pessoas, às vezes, uma clareza desconcertante, às vezes, aquele velho e desbotado estado condicionado que o cérebro, displicente, deixa-se ao me encaminhar a espelhar-me, implacável, em ti.
Às vezes, filha, estanco. Como canta Caetano: "Lua, lua, lua...es...tan...ca...Branca, branca, branca: a minha, a nossa voz, a tua, sendo um silêncio". Bem vindo este caos desagregador que, inabalável, sempre acaba por integrar.
Às vezes sou vibrante e criativa contigo, às vezes, as águas desse rio diminuem. Nisso tudo, busco mapear o que tu estás vivenciando na via direta de mim pra ti. Para que possas ser tu mesma cada vez mais. Olha, é tanto, tanto, tanto que me vejo, hoje, parada na calçada, vendo-me na passarela a desfilar, a transfigurar-me em mim também, outra de mim que é mais perto de mim do que nunca antes fui.
É como se fosse outra sendo-me eu mesma. Será que é bom ser filha de mim? Quimeras de perfeição.
Quero saber silenciar e saber a hora de falar, ter a clareza da percepção honesta, a humildade do meu tamanho, a generosidade de me permitir crescer - tudo, com completa franqueza, pela tua integridade e pelo vislumbre de que posso, de fato, estar cumprindo uma vida. Pelo planeta que vais habitar, autônoma, daqui a pouco. Como se faz isso? Não tenho de onde tirar cartas de sinalização, por isso, tem sido grande. Uma imagem fosse mais eficiente pra dizer tudo: muito de negro, muito de cores lindas - ausência e profusão de tons.
E ainda tem quem diga e também quem não tem coragem de dizer que ando desperdiçando meu tempo...
Bem, acordaste, vou lá.
Beijo
Tua Mãe

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Rendas e Graças

Quando a gente tem um filho no bucho, às vezes, inventa de ser poeta. Pois vê aí, Bobobi, o que eu escrevi com você me inspirando, pra sua vó, Maria e pra outra Maria, aquela lá de riba, a Santíssima. 
Beijo, mamãe.

Graças à mãe
À Mãe divina, mãe Maria
À mãe Terra
À mãe das águas doces
À mãe das águas salgadas
À Mãe-Deus
À mãe de todos
À mãe de cada um
À mãe que nasce dentro
Àquela cá de fora

Tecendo rendas
Ciranda das graças
Roda do mundo
Gira de Deusas
Festança de Águas
Contas de mistério
Cantos ancestrais entronizam a força do broto
Alvorecer da minha mãe
Em palavras azuis
Do tambor desta alma
Da boca que esteve em ti
Do coração que foi com o teu

À minha mãe
À mãe minha
À sua mãe
E à mãe de sua mãe
Às rosas de Maria
Ao silêncio que só ela escuta
No lugar onde só ela sabe
No escuro que abriga sua luz numinosa
Lá, onde ela co-existe com o Criador preciosa,
Altar onde guarda serena
A força que ela não mostra

Para a Mãe Divina, Maria, mãe de todos
Para minha mãe, Maria

Na tarde de céu azul de 22 de julho de 2008
(a três dias dos seis meses de gestação)

sábado, 10 de setembro de 2011

Eu tenho uma casinha lá na Marambaia



...só vendo que beleza!
nela revirou-se a gente pelo avesso, redescobrimos forças insuspeitas dentro de nós, empreendemos uma revolução de nós mesmos que só sabemos dela nós porque aconteceu cá dentro. Aqui, nesta casa, resignificamos nossas famílias de origem para tornar possível que a nossa florescesse e vigorasse. Aqui, na tarefa sublime e reveladora de me educar pra te cuidar tive a experiência sublime de alcançar estágios de paz que somente na infância remota lembro-me de ter experienciado. Retomei um precioso contato com a natureza, através do mini-ecossistema que nos circunda, que me remonta à felicidade. Nestes simples exercícios diários pude rememorar-me de mim mesma. Entre o cansaço das noites mal dormidas e a paz de presente que a vida me trazia e ainda me traz, sempre tive como cúmplice nossa toca, nosso ninho, que abriga a trindade: o espaço sagrado. Isso é ouro - se essas paredes falassem... ficariam mudas pra sempre!!!!
Temos vizinhos atores, diretores, músicos, arquitetos, palhaços, poetas. Tivemos dois ilustres: Machado de Assis e Cecília Meirelles, os quais, por algum estratagema do destino (?????), não foram nossos contemporâneos. No entanto, a poesia transporta os tempos pra qualquer lugar, Cecília, que morou no número 30 e poucos, logo no começo da nossa rua, escreveu-me um poema ao me ver passar pr'aqui e pr'acolá com você no colo, no carrinho, na "carcunda", andando, correndo, cantando, chorando,contando uma história... apressada, calma, aflita, em paz, algumas vezes, sozinha. E, ao observar-me atentamente, a cada dia, a vizinha sagaz conseguiu captar-me neste respiro da vida, no Cosme Velho. Compartilho contigo o poema que ela me mandou, através de uma amiga:

Às vezes abro a janela e encontro o jardineiro em flor
Outras vezes encontro nuvens espessas
Avisto crianças que vão para a escola
Pardais que pulam pelo muro
Gatos que abrem e fecham os olhos sonhando com pardais
Borboletas brancas, duas a duas,
como refletidas no espelho do ar
Marimbondos que sempre me parecem
personagens de Lope de Vega.
Às vezes, um galo canta
Às vezes, um avião passa
Tudo está certo, no seu lugar,
cumprindo o seu destino
E eu me sinto completamente feliz
Mas quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela,
uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas,
e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar
para poder vê-las assim
                                                             Cecília Meirelles

sábado, 3 de setembro de 2011

I. Outono



“É preciso tempo para criar uma criança”. Esta é a primeira frase de Shantala, massagem para bebês, o famoso livro do obstetra francês Friederyc Leboyer, aquele que, nos iêiêiês do século passado, falava de parto humanizado, nascer sem violência – mas isso era coisa de hippie, naquela época. Quando li essas sete palavras, ainda grávida, fez-se um sentido profundo pra mim, em meu peito um impacto silêncio. A verdade delas, Marina, resume boa parte do que tenho a te dizer aqui, de agora ao fim. Esse tempo de que fala o poeta/obstetra não é aquele do relógio, que passa tão rápido que a gente corre desesperada atrás. Ou que passa tão devagar que a gente tenta em vão tanger pra lá. Não, filha. Desse tempo só entende quem se apresenta ao não-tempo – um outro tempo do qual, um dia, uma sábia me falou. Até porque os dois habitam em ambos. O não-tempo é o tempo de que fala o francês, é o tempo que os bebês ensinam e que só acontece dentro de suas mães ou de quem se dedica à arte de cuidar deles – ou a alguma outra arte (ainda que seja a arte de conhecer a natureza ou a si mesmo). É o tempo de sorrir quando você mama que o tempo passa que a gente nem sente. É o tempo de acordar na madrugada e estar pronta pra cuidar de ti, como se o tempo não tivesse passado. É o tempo de, chegada a exaustão física, esperar um tempo, quieta, até passar o cansaço porque você está com a corda toda. É o tempo de te ver, te observar, te ler, te compreender, sem julgar quanto tempo está passando. É o tempo de aproveitar aquele sol, aquele gato que passa na calçada, fica um pouco mais, mãe, que lá vêm os cachorros da vizinha! Marina, esse tempo é todo especial. Quando vim aprendê-lo, você já tinha alguns meses. Quando vim me entender com ele, você já estava com mais de um ano de idade - e ainda assim, vieram outras etapas para entendê-lo melhor. Algumas pessoas confundem esse tempo com o tempo de amamentar de três em três horas (quem foi que inventou esses intervalos de comida, hein?), dar banho, trocar não sei quantas fraldas por dia, levar pra pracinha, dar papinha, brincar na sala, colocar pra dormir. Não, não. Esse tempo aí, não é o tempo do poeta. Não é o não-tempo. Esse tempo aí é o tempo do ritmo do dia a dia, a marca constante dos ponteiros do relógio, aliás, é tempo importantíssimo porque bebê precisa de ritmo mesmo. Esse outro tempo de que agora falo, filha, é o tempo que você me ensinou. Enquanto eu fazia todo o básico (acima), este tempo transfigurava-se, simultaneamente, em algo grande, muito grande e também muito íntimo, acontecendo, austero, dentro de mim, numa velocidade estonteante que nem o tempo consegue parar pra ver. Sim, Marina, esse é o tempo de quem para pra ouvir as plantas crescerem, é o tempo de quem flagra a boquinha de uma lagarta verde comendo uma apetitosa folha também bem verdinha, é o tempo que revela o imperceptível arabesco em alto relevo de uma pétala de flor em aste toda branca, o capricho do sol ao acender o veludo rosa-cintilante da outra pétala, o tucano na amendoeira, o gambá no fio da rua (sempre por volta das sete da noite...), a mãe mico carregando o miquito no mesmo fio do gambá, o ritmo da queda e da renovação das folhas que acompanha as estações – tudo isso eu vi e esse é um tempo que, em silêncio, cresce dentro da gente, mãe, que cria alguém, filho. Sob os auspícios desse tempo você cresceu em mim, nasceu e brincou. Enquanto eu buscava nova morada com seu pai, cuidava de comprar berço, cômoda, arrancava os cabelos em crises de grávida, você crescia dentro do meu útero ou dentro do não-tempo – o tempo em que as grandes coisas do mundo acontecem, entre elas, a formação de um bebê e o surgimento de uma jovem mãe – sempre numa velocidade estonteante. O não-tempo, em verdade, não existe só, porque está em tudo sem nada dizer. Como é ele? Hum... vamos brincar de contar muitas, muitas histórias.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Palavras Antes


A idéia que deu origem a este blog não é este blog. Antes o relato da profunda e transformadora jornada em busca de ser mãe. O desejo de compartir sempre existiu, as idéias saltavam como entidades com vida própria que nasciam pra ser do mundo. Aquela primavera de imagens, frases inteiras, diálogos, pedia interlocutores, alguém que ouvisse seu brotar. Inquietava-me quem eu começava a ser, os contextos que acompanhavam esse (re)surgimento e suas possibilidades de assimilação de minhas convicções e escolhas sobre parir, criar, educar: o país com suas políticas de saúde, suas convenções acerca do parto e do nascimento, o senso comum sobre educação, as famílias que me cercavam naquele momento. Foi então que resolvi escrever algo que contasse minha experiência. Seria perfeito (!!!): uma narrativa, digamos, mista, com toques de um livro de memórias, ao mesmo tempo em que passaria adiante informações as quais considero importantes sobre as sutilezas descobertas nas estações conceber, gestar, parir, criar. A primeira página me martelava há muitos dias, cedi às súplicas e... - o fim! Saiu tão ruim que tive vergonha de ler uma segunda vez: escondia-me, em humor patético, num ridículo manual de sobrevivência. Não, não era isso. Inspirada por um antigo professor de faculdade, não joguei o material fora. Mas também não ousei tocá-lo. Semanas depois, ousei. E percebi que aquelas palavras me diziam, em generosas e sutis entrelinhas, que, além de péssimas, eram igualmente preciosas, pois traziam o gérmen de algo bom – nada como ouvir o mestre e transgredir a si mesmo.
Foi quando lembrei de meu projeto pessoal para Marina, minha filha, acalentado desde seu primeiro mês de vida: escrever para ela sua própria história, até onde eu fosse capaz, até onde sua memória consciente talvez não alcançasse. Esse projeto primeiro tinha a ver com sobreviver e superar a mim mesma porque trazia à tona dificuldades de pós-parto, relatos de sensações sem lembranças, sentimentos sem nome, possíveis indicações de vivências de infância, de recém nascida,  talvez até, de bebê ainda no útero de minha mãe. Ao me ver nesse mar de inconsciência que gritava estranhos sussurros, senti-me em um deserto, já que quase nenhuma informação confirmava coisa alguma. Foi por isso que me presenteei com o compromisso de relatar para Marina minhas próprias sensações que estão ligadas ao começo de sua história, desde quando foi concebida. A princípio, este seria um relato íntimo, anotado em caderno espiral de pauta, para entregá-la quando, já adulta, tivesse condições de compreender, ainda que pelo olhar de sua mãe (e não pelo seu próprio). Imaginei que seria rico abrir para ela a minha vivência em um tempo em que nós duas éramos praticamente uma e, mesmo depois, quando não éramos tão uma assim. Finalmente a idéia desta publicação virtual fez-se configurada: era através do exercício de contar sua própria história à minha filha que extrairia o tom certo às minhas palavras para todo o mundo. Para falar com minha filha queria doçura e integridade – o mesmo que desejo ao leitor que não conheço – nada a ver com a pretensão de publicar algo “interessante”, pitoresco ou engraçado. O relato para Marina deve ser tão útil a ela quanto a qualquer um, porque traz ao lume conteúdos tão profundos e francos que acabam por tornar-se universais. Estão aí, para quem quiser ler.
Agora, com suas licenças, meu papo é com Marina (e com mais quem quiser ouvir) até a última palavra.