terça-feira, 27 de setembro de 2011

Rendas e Graças

Quando a gente tem um filho no bucho, às vezes, inventa de ser poeta. Pois vê aí, Bobobi, o que eu escrevi com você me inspirando, pra sua vó, Maria e pra outra Maria, aquela lá de riba, a Santíssima. 
Beijo, mamãe.

Graças à mãe
À Mãe divina, mãe Maria
À mãe Terra
À mãe das águas doces
À mãe das águas salgadas
À Mãe-Deus
À mãe de todos
À mãe de cada um
À mãe que nasce dentro
Àquela cá de fora

Tecendo rendas
Ciranda das graças
Roda do mundo
Gira de Deusas
Festança de Águas
Contas de mistério
Cantos ancestrais entronizam a força do broto
Alvorecer da minha mãe
Em palavras azuis
Do tambor desta alma
Da boca que esteve em ti
Do coração que foi com o teu

À minha mãe
À mãe minha
À sua mãe
E à mãe de sua mãe
Às rosas de Maria
Ao silêncio que só ela escuta
No lugar onde só ela sabe
No escuro que abriga sua luz numinosa
Lá, onde ela co-existe com o Criador preciosa,
Altar onde guarda serena
A força que ela não mostra

Para a Mãe Divina, Maria, mãe de todos
Para minha mãe, Maria

Na tarde de céu azul de 22 de julho de 2008
(a três dias dos seis meses de gestação)

sábado, 10 de setembro de 2011

Eu tenho uma casinha lá na Marambaia



...só vendo que beleza!
nela revirou-se a gente pelo avesso, redescobrimos forças insuspeitas dentro de nós, empreendemos uma revolução de nós mesmos que só sabemos dela nós porque aconteceu cá dentro. Aqui, nesta casa, resignificamos nossas famílias de origem para tornar possível que a nossa florescesse e vigorasse. Aqui, na tarefa sublime e reveladora de me educar pra te cuidar tive a experiência sublime de alcançar estágios de paz que somente na infância remota lembro-me de ter experienciado. Retomei um precioso contato com a natureza, através do mini-ecossistema que nos circunda, que me remonta à felicidade. Nestes simples exercícios diários pude rememorar-me de mim mesma. Entre o cansaço das noites mal dormidas e a paz de presente que a vida me trazia e ainda me traz, sempre tive como cúmplice nossa toca, nosso ninho, que abriga a trindade: o espaço sagrado. Isso é ouro - se essas paredes falassem... ficariam mudas pra sempre!!!!
Temos vizinhos atores, diretores, músicos, arquitetos, palhaços, poetas. Tivemos dois ilustres: Machado de Assis e Cecília Meirelles, os quais, por algum estratagema do destino (?????), não foram nossos contemporâneos. No entanto, a poesia transporta os tempos pra qualquer lugar, Cecília, que morou no número 30 e poucos, logo no começo da nossa rua, escreveu-me um poema ao me ver passar pr'aqui e pr'acolá com você no colo, no carrinho, na "carcunda", andando, correndo, cantando, chorando,contando uma história... apressada, calma, aflita, em paz, algumas vezes, sozinha. E, ao observar-me atentamente, a cada dia, a vizinha sagaz conseguiu captar-me neste respiro da vida, no Cosme Velho. Compartilho contigo o poema que ela me mandou, através de uma amiga:

Às vezes abro a janela e encontro o jardineiro em flor
Outras vezes encontro nuvens espessas
Avisto crianças que vão para a escola
Pardais que pulam pelo muro
Gatos que abrem e fecham os olhos sonhando com pardais
Borboletas brancas, duas a duas,
como refletidas no espelho do ar
Marimbondos que sempre me parecem
personagens de Lope de Vega.
Às vezes, um galo canta
Às vezes, um avião passa
Tudo está certo, no seu lugar,
cumprindo o seu destino
E eu me sinto completamente feliz
Mas quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela,
uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas,
e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar
para poder vê-las assim
                                                             Cecília Meirelles

sábado, 3 de setembro de 2011

I. Outono



“É preciso tempo para criar uma criança”. Esta é a primeira frase de Shantala, massagem para bebês, o famoso livro do obstetra francês Friederyc Leboyer, aquele que, nos iêiêiês do século passado, falava de parto humanizado, nascer sem violência – mas isso era coisa de hippie, naquela época. Quando li essas sete palavras, ainda grávida, fez-se um sentido profundo pra mim, em meu peito um impacto silêncio. A verdade delas, Marina, resume boa parte do que tenho a te dizer aqui, de agora ao fim. Esse tempo de que fala o poeta/obstetra não é aquele do relógio, que passa tão rápido que a gente corre desesperada atrás. Ou que passa tão devagar que a gente tenta em vão tanger pra lá. Não, filha. Desse tempo só entende quem se apresenta ao não-tempo – um outro tempo do qual, um dia, uma sábia me falou. Até porque os dois habitam em ambos. O não-tempo é o tempo de que fala o francês, é o tempo que os bebês ensinam e que só acontece dentro de suas mães ou de quem se dedica à arte de cuidar deles – ou a alguma outra arte (ainda que seja a arte de conhecer a natureza ou a si mesmo). É o tempo de sorrir quando você mama que o tempo passa que a gente nem sente. É o tempo de acordar na madrugada e estar pronta pra cuidar de ti, como se o tempo não tivesse passado. É o tempo de, chegada a exaustão física, esperar um tempo, quieta, até passar o cansaço porque você está com a corda toda. É o tempo de te ver, te observar, te ler, te compreender, sem julgar quanto tempo está passando. É o tempo de aproveitar aquele sol, aquele gato que passa na calçada, fica um pouco mais, mãe, que lá vêm os cachorros da vizinha! Marina, esse tempo é todo especial. Quando vim aprendê-lo, você já tinha alguns meses. Quando vim me entender com ele, você já estava com mais de um ano de idade - e ainda assim, vieram outras etapas para entendê-lo melhor. Algumas pessoas confundem esse tempo com o tempo de amamentar de três em três horas (quem foi que inventou esses intervalos de comida, hein?), dar banho, trocar não sei quantas fraldas por dia, levar pra pracinha, dar papinha, brincar na sala, colocar pra dormir. Não, não. Esse tempo aí, não é o tempo do poeta. Não é o não-tempo. Esse tempo aí é o tempo do ritmo do dia a dia, a marca constante dos ponteiros do relógio, aliás, é tempo importantíssimo porque bebê precisa de ritmo mesmo. Esse outro tempo de que agora falo, filha, é o tempo que você me ensinou. Enquanto eu fazia todo o básico (acima), este tempo transfigurava-se, simultaneamente, em algo grande, muito grande e também muito íntimo, acontecendo, austero, dentro de mim, numa velocidade estonteante que nem o tempo consegue parar pra ver. Sim, Marina, esse é o tempo de quem para pra ouvir as plantas crescerem, é o tempo de quem flagra a boquinha de uma lagarta verde comendo uma apetitosa folha também bem verdinha, é o tempo que revela o imperceptível arabesco em alto relevo de uma pétala de flor em aste toda branca, o capricho do sol ao acender o veludo rosa-cintilante da outra pétala, o tucano na amendoeira, o gambá no fio da rua (sempre por volta das sete da noite...), a mãe mico carregando o miquito no mesmo fio do gambá, o ritmo da queda e da renovação das folhas que acompanha as estações – tudo isso eu vi e esse é um tempo que, em silêncio, cresce dentro da gente, mãe, que cria alguém, filho. Sob os auspícios desse tempo você cresceu em mim, nasceu e brincou. Enquanto eu buscava nova morada com seu pai, cuidava de comprar berço, cômoda, arrancava os cabelos em crises de grávida, você crescia dentro do meu útero ou dentro do não-tempo – o tempo em que as grandes coisas do mundo acontecem, entre elas, a formação de um bebê e o surgimento de uma jovem mãe – sempre numa velocidade estonteante. O não-tempo, em verdade, não existe só, porque está em tudo sem nada dizer. Como é ele? Hum... vamos brincar de contar muitas, muitas histórias.